Questão política fez arte de Wilson Simonal ser ignorada

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Mal ou bem comparando, é como recusar a leitura de "O Fazedor" porque o escritor argentino Jorge Luis Borges apoiou a ditadura militar argentina. Ou negar-se a assistir a "Vestido de Noiva" por causa da simpatia do dramaturgo Nelson Rodrigues pelo regime instaurado no Brasil em 1964. Ou recusar as páginas de "Memórias do Cárcere" em virtude do encantamento de Graciliano Ramos por um carniceiro como Stálin. Ainda, rejeitar a montagem de "Pequenos Burgueses", já que Máximo Gorki patrocinou, com seu prestígio, a tirania na União Soviética. lista é infinda. Implicaria eliminar clássicos do western estrelados, dirigidos e produzidos por sócios do macarthismo --alguns deles delatores insaciáveis. Ou afastar dois gigantes da literatura, como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, a depender das veleidades ideológicas do freguês. É essa a natureza do crime contra a cultura brasileira que se perpetrou nas últimas décadas, suprimindo dos compêndios e, quando possível, da memória um cantor fabuloso como Wilson Simonal (foto). Exagero? Sugestão: ouvir sua interpretação de "Sá Marina", obra-prima de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, em http://www.youtube.com/. A seguir, no mesmo site, clicar o registro de Stevie Wonder para a adaptação em inglês da canção, ancorada em um naipe de metais empolgante. Pois Simonal não fica atrás do ícone da música americana. Se o cotejo com os maiores é medida de talento, há dois gigantes ao microfone no duo com Sarah Vaughan em "The Shadow of Your Smile", também no YouTube e garimpado para o filme "Simonal - Ninguém Sabe o Duro Que Dei". Restituir o intérprete de sucessos como "País Tropical" e "Meu Limão, Meu Limoeiro" à sua proeminência entre os cantores nacionais é um dos muitos méritos dos cineastas Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal. O documentário sobre a tragédia de Simonal renova a impressão de que, quando a apreciação estética se subordina à política, perde a arte. E sugere ser ilusão tomar como compulsória a fórmula boa gente-boa arte ou gente ruim-arte ruim.A condição de simpatizante da ditadura militar não diminui o artista Simonal. Assim como a vida corajosa de opositor não tornou mais inspirada a arte de ninguém. O contrário também vale: a grande arte não faz maior o cidadão. E este é outro engano recorrente: valorizar os gigantes da arte por gestos pouco edificantes como cidadãos, e não pelo que eles têm de bom. Nelson Rodrigues não era grande porque fazia pouco das denúncias de tortura, mas porque, entre outros brilhos, escrevinhava crônicas futebolísticas como só ele.
Fonte: Bol

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